domingo, 1 de maio de 2016

Azul

O dia que se mostrava através da minha janela provava a existência de Deus.
Era uma manhã de verão coberta de sol que brilhava no céu azul.
Sinceramente, nesse dia percebi que eu jamais conhecera o azul, pois a ideia que eu tinha dessa cor foi desfeita por aquele céu. As coisas são assim mesmo: você tem uma ideia sobre elas, mas não são mais do que meias verdades. Até porque verdades inteiras jamais existiram.
A meia verdade que eu tinha sobre o azul já não existe mais. Foi substituída por outra meia verdade, mais convincente.
E assim eu fiquei a ver o céu azul cercado por coadjuvantes imprescindíveis, como o verde das plantas do jardim de entrada e mesmo a luz do sol.
Lá fora, crianças brincavam com água. A felicidade vinha dali.
Mas então alguém fechou a janela e tudo aquilo deixou de existir. O azul foi substituído por um amarelo pálido; o vento parou de soprar, os sons ficaram abafados e a vida se perdeu.
Eu jamais tive forças pra me levantar e abrir aquela janela outra vez.
Mas pouco importou, pois o azul havia se impregnado em mim,
E um quadro eu pude pintar.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Sobre o amor

Oi...
Oi.
Por que você está triste?
Porque ela se foi.
Pra sempre?
Como vou saber?
Desculpe, essa foi uma pergunta tola.
Por que você a deixou partir?
Agora é você que vai me desculpar, pois essa pergunta é ainda mais estúpida que a primeira.
Não entendo.
Você conhece o amor?
Só por novela.
É por isso.
A novela mente?
Não é o que eu estou dizendo! É que ela foca sempre em um determinado aspecto da realidade.
Como assim?
Por exemplo, na novela eles sempre ficam juntos pra sempre.
E não é?
Não falei?!
Achei que o pra sempre definia o amor!
Pois é justamente o contrário, é o amor que define o pra sempre.
E o que faz o amor sem o pra sempre?
Continua a existir e, de alguma forma, permanecerá existindo pra sempre.
Estou tão confusa!
Não se preocupe, o amor não é dessas coisas pra se entender, ele foi feito pra se sentir. Um dia você sentirá, e aí irá entender sem que ninguém precise te explicar.
Queria que esse dia fosse hoje.
Por quê?
Pra entender porque foi que você deixou que ela partisse, poxa, já que agora está tão triste.
Eu a deixei partir porque quando ela me olhava com aqueles olhos grandes e brilhantes parecia que ela conseguia enxergar o meu íntimo, cada medo e pensamento, cada desejo e sonho. Porque seu sorriso me concedia todas as certezas que eu precisava e me fazia entender um pouquinho mais de tudo. Porque seu abraço me trazia uma paz que eu jamais irei esquecer e, com ele, aquela vontade de não desgrudar da sua pele quente e macia, a coisa mais forte que já senti na vida! Eu a deixei partir porque nada me fazia mais feliz do que poder cuidar dela. Mas, principalmente, porque ela nunca foi um fim, e sim um meio. Jamais foi um ponto, mas três, uma reticência continua. E assim ela me ensinou o conceito de eterno.
Nossa...
Percebe porque tive que deixá-la ir? Como poderia ser tão egoísta depois dela ter me feito experimentar a coisa mais incrível que eu poderia desejar? Por me fazer sorrir, por me fazer sonhar, por me fazer acreditar, por me fazer amar... Não seria injusto, depois de tudo isso, tentar segurá-la aqui?
Seria.
Pois então.
Acho que agora já sei o que é o amor.
E o que é?
Gratidão.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A casa da minha mãe

Essa sempre vai ser a casa da minha mãe.
Mas só será digna dessa designação enquanto estiver limpa,
É que sujeira ela não permitia.

Cada cômodo uma história,
Um olhar despercebido.
Entre o choro e a risada o momento mais bonito.

E sempre que na mesa,
Houver coca e macarrão,
Que esta é a casa dela, jamais se esquecerão.

Ainda que as flores morram,
E que as fotos fiquem amarelas,
Paredes e pessoas continuarão a se lembrar dela.

Há retratos, é verdade,
E objetos pessoais,
Mas nada disso é necessário, pois existe muito mais!

É que quando uma alma passa
E ilumina tantas vidas com alegria e prazer,
Coração algum é capaz de se esquecer.

Durante a noite

Chegou tarde no velho apartamento do centro. Abriu a porta com leve dificuldade imposta pelo álcool. Não acendeu a luz, queria evitar a dor de cabeça. Jogou as velhas chaves do velho Gol quadrado na mesinha de centro, tirou os sapatos (mas permaneceu com as meias) e se jogou no sofá. "Merda de sofá duro", praguejou. Mas só por costume, estava cansado demais para se importar de verdade. E logo adormeceu. E mal adormeceu, acordou com um barulho que o fez cair do sofá. Olhou atordoado pela sala e viu, do lado oposto, uma sombra que se destacava mesmo na escuridão do cômodo, pois era ainda mais escura que o escuro. Uma sombra pequena cuja forma remetia a um cabelo e a um vestido: uma criança o fitava. Na verdade não conseguiu ver seus olhos, mas ela permaneceu ali parada, imóvel, como se não respirasse. Ele nada conseguiu fazer, estava em choque, mais imóvel que a própria sombra. Um arrepio perpassou cada parte do seu corpo, de cima até em baixo. Nunca um arrepio foi tão dolorido, nunca seu coração bateu tão acelerado, nunca se sentiu tão lúcido enquanto estava bêbado. Aquela criança invadiu seu coração e roubou suas certezas, e enquanto isso acontecia ele tremia incontrolavelmente. Então, inesperadamente, a menina começou a chorar, um choro desesperado. No chão abandonado, ele balançava a cabeça e suplicava: "não, não!" - a negação humana despida de arrogância. Pensou em Deus, algo que nunca fazia. Era tarde. E a criança chorava mais alto e mais alto, e o desespero e o pânico extrapolaram seus limites. A sombra começou a caminhar em sua direção e ele assistiu tudo sem conseguir reagir, só chorava e tremia. Cada vez mais perto. Cada vez mais perto. Muito perto. Ele se jogou ao chão abraçando as pernas e chorando desesperadamente, esperando ser tocado a qualquer momento... Não aconteceu. Ficou ali, deitado em posição fetal sem coragem para olhar, sem coragem para acender a luz, até o dia amanhecer. E todos sabemos que o sol sempre nasce. Mais tarde, a maioria das pessoas lhe disseram que era alucinação de bebida. Não teve coragem de contar para a avó, sabia muito bem que o que ela tinha pra falar era a última coisa que queria ouvir. Parou de beber. Mas o medo daquela noite nunca mais o abandonou, de alguma maneira era como se o medo tivesse tomado uma parte de seu coração, e ainda conseguia ouvir aquele choro em noites vazias.

A rua

O moço da esquina saiu do seu portão pequeno assim que o sol nasceu.
Deu bom dia ao vizinho que ia na outra direção, cumprimentou a gari e atravessou a rua.
Estava indo tomar o seu café de sempre na padaria ao lado.
Passou pela senhora bem apessoada do outro quarterão, ela não o olhou,
embora soubesse que ele a estava olhando.
Andando como madame ela seguiu pela calçada em direção ao ponto de ônibus.
Deu um "oi" discreto para a menina do caixa, que lá de dentro do supermercado retribuiu, 
e parou na casinha para comprar sitpass.
Naquele momento o rapaz da bicicleta passou por ela gritando "Amiga!".
Diziam que ele não era bom da cabeça, mas era excelente do coração.
Rapaz puro, como dizem. Um coitado, talvez.
Ele foi com sua bicicleta velha até a papelaria que já abria as portas
e quase atropelou o cara das tatuagens.
Aquele ali era alto e corpulento, sempre de cara fechada, mas era boa gente.
Praguejou contra o menino enquanto desviava da bicicleta
e passou reto sem cumprimentar o senhor do jogo do bicho. Fez bem.
Se tratava de um senhor velho e tarado, diziam que por culpa da idade.
Era bicheiro, mas não sabia nada sobre a confusão no Senado.
Embora soubesse 
muito bem que a politica nada tinha de bom.
"Os preços não param de subir!", dizia com frequência. 
Ele arrumou os óculos e olhou pro outro lado da rua, de onde vinha o carioca que há muito morava ali. 
Vinha com a camisa do Flamengo e ouviu de alguém que passava em um carro popular, "E o Mengão?". 
"Aquele time é ruim demais, ô timinho feio!", gritou ele em resposta.
E logo acenou para o senhor da esquina que deixava a padaria.

Naquela hora os meninos já saiam pras escolas, as pessoas iam para o ponto de ônibus e os carros
passavam apressados. O moço da esquina entrou de volta no seu pequeno portão.
Era assim todos os dias.

Lembranças

Entrei naquela casa antiga daquele bairro antigo.
Pessoas simples sentadas em cadeiras de bar improvisadas na garagem amarela.
Andei lentamente reconhecendo uma ou duas pessoas que diziam sempre como eu estava
bonita e havia crescido.
Não estava bonita, estava de calça jeans e allstar de quem chega da escola.
Mas agradeci mesmo assim. Não com palavras, mas com sorrisos sem dentes.
Eu estava triste. Muitos ali estavam.
Me vi na sala sentindo o cheiro de flores e vendo aquela senhora, sempre tão dócil e tão
educada, parecendo dormir. Chorei.
Eu choro com frequência. Assim fazem as meninas, eu acho.
Mas teria chorado mesmo se fosse menino.
Não há nada que me lembre mais das pessoas que eu amo e que já se foram, do que as
pessoas que conviveram com elas.
Não são os objetos, nem os lugares... São as pessoas. Elas me trazem as lembranças.
E eu havia perdido naquele dia uma grande lembrança.
Talvez a maior delas.

O herói

O herói foi insultado ao entrar na condução das 18h.
Não que alguém tenha lhe dito algo, mas o simples fato de ter que entrar ali
era um insulto.
Ora, aquele não era o lugar de um herói!
Já imaginou? Aquiles, ou quem sabe Aragorn, no ônibus lotado nas ruas do Brasil?
Isso não faz sentido algum.
Mas ali estava o herói, espremido entre várias outras pessoas, abatido e humilhado,
sem nada poder fazer a respeito.
Logo ele, tão destemido e tão forte!
E depois de uma hora desceu cabisbaixo na rua de casa, vencido e cansado.
Ao entrar em casa foi saudado por abraços, beijos e jantar quentinho.
Pois ali havia pessoas que reconheciam seus feitos,
que sabiam muito bem quem ele era.
Um herói!
Que acordava às 4h da manhã para trabalhar pesado,
tentar recompensar a mulher que tinha ao seu lado, dar aos filhos
um pouco mais do que teve quando era da idade deles... 
E para ser humilhado.