terça-feira, 21 de outubro de 2014
Durante a noite
Chegou tarde no velho apartamento do centro.
Abriu a porta com leve dificuldade imposta pelo álcool.
Não acendeu a luz, queria evitar a dor de cabeça.
Jogou as velhas chaves do velho Gol quadrado na mesinha de centro, tirou os sapatos (mas permaneceu com as meias) e se jogou no sofá.
"Merda de sofá duro", praguejou. Mas só por costume, estava cansado demais para se importar de verdade. E logo adormeceu.
E mal adormeceu, acordou com um barulho que o fez cair do sofá.
Olhou atordoado pela sala e viu, do lado oposto, uma sombra que se destacava mesmo na escuridão do cômodo, pois era ainda mais escura que o escuro.
Uma sombra pequena cuja forma remetia a um cabelo e a um vestido: uma criança o fitava.
Na verdade não conseguiu ver seus olhos, mas ela permaneceu ali parada, imóvel, como se não respirasse.
Ele nada conseguiu fazer, estava em choque, mais imóvel que a própria sombra.
Um arrepio perpassou cada parte do seu corpo, de cima até em baixo.
Nunca um arrepio foi tão dolorido, nunca seu coração bateu tão acelerado, nunca se sentiu tão lúcido enquanto estava bêbado.
Aquela criança invadiu seu coração e roubou suas certezas, e enquanto isso acontecia ele tremia incontrolavelmente.
Então, inesperadamente, a menina começou a chorar, um choro desesperado.
No chão abandonado, ele balançava a cabeça e suplicava: "não, não!" - a negação humana despida de arrogância.
Pensou em Deus, algo que nunca fazia. Era tarde.
E a criança chorava mais alto e mais alto, e o desespero e o pânico extrapolaram seus limites.
A sombra começou a caminhar em sua direção e ele assistiu tudo sem conseguir reagir, só chorava e tremia.
Cada vez mais perto.
Cada vez mais perto.
Muito perto.
Ele se jogou ao chão abraçando as pernas e chorando desesperadamente, esperando ser tocado a qualquer momento...
Não aconteceu.
Ficou ali, deitado em posição fetal sem coragem para olhar, sem coragem para acender a luz,
até o dia amanhecer. E todos sabemos que o sol sempre nasce.
Mais tarde, a maioria das pessoas lhe disseram que era alucinação de bebida.
Não teve coragem de contar para a avó, sabia muito bem que o que ela tinha pra falar era a última coisa que queria ouvir.
Parou de beber.
Mas o medo daquela noite nunca mais o abandonou, de alguma maneira era como se o medo tivesse tomado uma parte de seu coração, e ainda conseguia ouvir aquele choro em noites vazias.
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